sexta-feira, 23 de setembro de 2011

DIFERENÇA ENTRE O ARTISTA E O ARTESÃO - TEXTO DE MARI ODE ANDRADE

O artista e o artesão

Mário de Andrade
Detendo-se nas questões arte e artesanato começamos a identificar o fazer que distingue cada uma delas… Que arte na realidade não se aprende. Existe, é certo, dentro da arte, um elemento, o material, que é necessário por em ação, mover, para que a obra de arte se faça. O som em suas múltiplas maneiras de se manifestar, a cor, a pedra, o lápis, o papel, a tela, a espátula, são o material de arte que o ensinamento facilita muito a por em ação. Mas nos processos de movimentar o material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato. Pelo menos naquilo que se aprende. Afirmemos, sem discutir por enquanto que todo artista tem de ser ao mesmo tempo artesão. Isso parece incontestável e, na realidade, perscrutando a existência de qualquer grande pintor, escultor, desenhista ou músico, encontramos sempre por detrás do artista, o artesão.
O artesanato, os segredos, os caprichos, as exigências do material: isso é assunto ensinável e de ensinamento muitas vezes dogmático. Porém, fugir disso será normalmente prejudicial para a obra de arte. E se um artista é verdadeiramente artista, ou seja, está consciente do seu destino e da missão que se deu para cumprir no mundo, ele chegará fatalmente àquela verdade de que, em arte, o que existe de principal é a obra de arte.
Foram os próprios filósofos escolásticos, que espantosamente mais claro afirmaram isso quando, ao porem a arte no domínio do “Fazer”, dela disseram ter “uma finalidade, regras e valores, que não são os do homem propriamente, mas da obra de arte a ser feita”. Está claro que ao ser a obra de arte a finalidade mesma da arte, não exclui os caracteres e exigências humanos, individuais e sociais, do artefazer. Pois a arte continua essencialmente humana, se não pela sua finalidade, pelo menos pela sua maneira de operar.
O artesanato é uma parte da técnica da arte, a mais desprezada infelizmente, mas a técnica da arte não se resume no artesanato. O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar, mas há uma parte da técnica de arte que é por assim dizer, a objetivação, a concretização de uma verdade interior do artista. Esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele é, como indivíduo e como ser social. Isto não se ensina e reproduzir é imitação. Isto é o que chamamos a técnica de Rembrandt, e Fra Angélico ou de Renoir, que divergem os três profundamente não apenas na concepção do quadro, mas conseqüentemente na técnica do fazer.
Outra manifestação da técnica é a virtuosidade, que seria do artista criador o conhecimento e prática de diversas técnicas históricas da arte, enfim, o conhecimento da técnica tradicional. Este aspecto da técnica que é, por exemplo, conhecer como os Assírios, os Gregos, Miguel Ângelo ou Rodin resolveram a reprodução do cabelo na pedra ou no mármore, que é conhecer a distribuição das luzes e das sombras, dos tons frios e quentes, ou a maneira diversa de pincelar de Rafael, de um Düerer, de um El Greco ou de um Cézanne; que é ainda conhecer a evolução histórica da cadência de dominância desde os primeiros compositores tonalistas até os nossos dias: este aspecto da técnica a que chamamos de virtuosismo é também ensinável e muito útil. Não me parece imprescindível, porém todo virtuosismo apresenta grandes perigos. Não só porque pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais para se tornar simplesmente “academismo”; porque pode tornar um artista vítima de suas próprias habilidades, isto é, um indivíduo que nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável da arte pela arte, mas que se atêm em meros malabarismos de habilidades pessoais, entregue a sensualidade do aplauso fácil.
Numa anedota espanhola, do moço poeta que, desejoso de fazer poemas sublimes, se dirigiu ao maior poeta do tempo e lhe perguntou como é que este fazia versos. E o grande poeta respondeu: No princípio do verso, põe-se a maiúscula e no fim a pontuação. “E no meio?” Indagou o moço. E o grande poeta: “hay que poner talento”…
Quando falamos de pessoas, falamos de identidade, quando falamos de grupos sociais, região, comunidade, nação, temos uma cultura. A imagem inicial e básica que orienta o que é artesanal nasce no plano do fazer, dominar conhecimentos e tecnologia tendo na ação de executar com as mãos o que é mais representativo do protótipo do ser artesão, do fazer artesanato, do caracterizar o objeto artesanal.
O que importa é que o apoio das ferramentas assuma a condição de prolongamento e projeção do corpo do homem, multiplicando possibilidades nos atos de transformar e revelar nas intervenções que ele, homem, faz da natureza como indivíduo e tradutor da sua cultura. Assim, o objeto torna-se um testemunho não apenas do conhecimento técnico, mas, principalmente, da visão do mundo, de sua revelação, homem e sociedade, dialogando na tentativa de dizer quem ele é pelo que faz, significando para si e para seu grupo valores simbólicos de quem vivencia o seu modelo cultural.
Se consideramos essas questões como verdadeiras, vemos aí a total impossibilidade de estabelecer parâmetros ou comparações, nas rotuladas e chamadas qualidade do artesanato, autenticidade, rusticidade, como componentes necessários ao estabelecimento de um conceito ou conceitos que objetivem em visões externas de produções complexas que se expressam independente de teorias e críticas.
Existe ainda outra questão angustiante que diz respeito à repetição de formas ou criação, vista como novidade ou revelação. Os compromissos com a manutenção de modelos, ou com a incorporação de novos temas para construir objetos, estão além do domínio das técnicas ou das descobertas individuais. Modelo existe como marca da identidade desse momento, que o grupo realizador pode querer dar continuidade, tendo, porém, autonomia de transformar parcialmente o modelo ou até substituí-lo por outro. Observa-se ainda uma fantasia do que serve de tipo quando a cultura é vista pelo outro perpetuando aspectos formais que se enquadre no desejado conteúdo característico ou típico e é preciso ainda alertar para as implicações do comércio, do turismo, do estado, da moda, da intervenção de intelectuais, nos descobridores de típicos, ora como artesãos ora como objetos. O repetir o modelo está na utilização de uma técnica para um produto aceito e a criação, o que há dela, desponta na rebeldia desse modelo como forma transgressora da repetição. O artesanato, antes de tudo é o testemunho insofismável do complexo homem/natureza. E é por meio da cultura material que o domínio da técnica e do tipo de objeto estarão dizendo sobre o espaço de sua feitura, ora pelos aspectos físicos, ora pela própria ideologia da cultura.
Bibliografia:
ANDRADE, Mário de. O artista e o artesão. Aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, da Universidade do Distrito Federal em 1938. 16p. (Mimeogr.).

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